quarta-feira, 27 de abril de 2011

A varanda



Hoje visitei Lúcia. Ela estava maldisposta devido a uma suposta gravidez. Nessa altura, eu olhava-a e pensava como ela era falsa e ridícula. Mesmo assim, abracei-a pedindo que não se enervasse muito para poupar o feto. Ela cheirava a vomitado e não consegui estar nos braços dela mais do que um minuto. Depois, ofereci-lhe um copo de água e fui beber uma cerveja para a varanda. Precisava de ar.


Enquanto olhava a cidade anoitecendo, percebia como o mundo está coberto de mentiras e ilusões; como o ser humano é feito de criações e enredos para transformar ou manipular a sua história de vida. Por vezes, não sei se são necessidades psíquicas ou apenas uma fundamentação análoga para disfarçar o cerne da loucura. De qualquer dos modos, sei que Lúcia não estava bem.
Quando voltei para casa, enfiada num táxi, o motorista falou-me sobre mil e uma teorias desfragmentando o sistema político, como se isso me interessasse. Depois, por fim, concluiu: a menina não vê que a vida é um palco?

Entrei no quarto e liguei para Lúcia rapidamente. Depois disse: Lúcia, minha querida amiga, deixa de lado as encenações, estou tão cansada dos teus teatros, das tuas ilusões de gravidez, de depressão, de estigmas telecomandados pelo teu cérebro; estou cansada de te mentires a ti mesma com supostas cenas que acontecem na tua vida. Sabes, o carinho que procuras não está precisamente na força que emerges sobre os outros para que vão em tua direcção, mas sim, na tua própria energia interior procurando o carinho dos outros - só aí eles te vão encontrar. A vida até pode ser um palco, mas nesta vida de merda não precisamos de actuar, mas sim de agir com a nossa coragem. Pára lá de chorar, vou buscar-te dentro de 30 minutos.


Quando cheguei, ela estava bastante mais calma. Numa tentativa falhada tentei leva-la a jantar num restaurante mexicano, mas pelo caminho ela desistiu e voltamos para casa. Comemos umas sanduíches e sentamo-nos no sofá. Falamos sobre as abstracções da vida, dos sentimentos profundos, das filosóficas conexões da vida num mundo bem real e cru.


Mas passados alguns instantes, quando abri os olhos, é que me apercebi que já tinha beijado Lúcia nos lábios - e pior, sentia um desejo malicioso de a beijar mais e mais e mais, como um fogo que se alastrava pela minha boca e me tomava posse das minhas funcionalidades físicas e mentais. (Será que esta era mais uma das suas encenações? Seria este um teatro da minha inexplicável personalidade? Ou seria apenas eu de novo, que não me conseguindo conter neste espectáculo improvável e misterioso, beijei Lúcia desesperadamente?)


Fosse como fosse, o certo é que eu estava ali através daquela força manipuladora que ela atirava sobre mim. O certo é que eu corri para Lúcia para lhe dar o conforto que ela pretendia, encenando os meus passos também, para agarrar o corpo daquela mulher, actriz no meu palco de ilusões.


Lúcia, Lúcia… Eu hoje disse-te que nesta vida de merda não precisamos de actuar, mas menti-te, para equilibrar os nossos espíritos diante o mundo, sob a lua que entra pela minha janela agora, falando-me de ti. Amanhã, se tiver tempo, ainda volto a tua casa para te perguntar pormenores sobre o bebé. Quem sabe, ainda não te tenhas esquecido do beijo desta noite e possamos ir para a tua varanda, ver o sol deitar-se com a cidade, enquanto nos beijamos e o mundo se desmistifica bem dentro de nós.